Uma vida sempre no limite
Jaime Neves foi a figura emblemática do 25 de Novembro de 1975. Ponto alto de um percurso feito de combates e paixão pela noite.
Jaime Alberto Gonçalves das Neves nasce a 24 de Março de 1936 na aldeia de São Martinho de Anta, Sabrosa. Filho de um polícia e de uma doméstica, não tem irmãos mas sobra-lhe talento para fazer amigos. Não se imagina ainda que o rapaz de baixa estatura virá a ser uma das figuras maiores da vida militar portuguesa.
O percurso de Jaime Neves está agora contado numa biografia, da autoria do professor universitário e antigo comando Rui de Azevedo Teixeira. Será apresentada por Ramalho Eanes e António-Pedro Vasconcelos, no próximo dia 25 de Novembro, em Lisboa. O livro narra as duas facetas que o título evidencia: ‘Homem de Guerra e Boémio’ são qualificativos de um personagem que quis sempre viver no limite.
ESCOLA DE VIRTUDES E FOLIA
Jaime Neves completa o liceu em Vila Real com boas notas. Chegou a inscrever-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Mas escolhe antes a vida militar e ingressa na Escola do Exército. No primeiro ano do curso, na Amadora, encontra uma turma distinta. Ramalho Eanes, Melo Antunes, Loureiro dos Santos e Almeida Bruno são do seu curso. Mal sabem o papel que terão no futuro do País, 20 anos mais tarde.
Outro distinto colega desse primeiro ano é Alpoim Calvão, que depois completará a formação na Marinha. O comandante recorda à Domingo esses tempos de camaradagem. "Ficámos amigos, ele tinha uma personalidade que se destacava. Vinha de Trás-os-Montes e começou a descobrir os prazeres da noite por essa altura. Era um tipo muito simpático", lembra o militar que haveria de se destacar pelos seus feitos de guerra na Guiné-Bissau.
A partir do segundo ano, Neves muda-se para a Academia Militar, em Lisboa. Começa a nascer a lenda do ‘Boémio’. Os muros da Academia não eram altos o suficiente para o manter no quartel. À noite, usava uma escada para se escapar para a noite lisboeta, em farras que duravam até de madrugada pelo mal afamado Bairro Alto. Ganha alcunha de ‘Rufino’, por causa de um personagem de banda desenhada da época. Jaime Neves não foi um aluno brilhante, mas cumpriu o curso sem grandes sobressaltos.
PARTIDA PARA ÁFRICA
Em Novembro de 1957, o alferes Jaime Neves parte para Moçambique. Em Tete, tem o primeiro contacto com África. Deslumbra-se com as cores e os cheiros, arrepia-se com a forma como os colonos brancos tratam os negros. A missão é dar instrução aos soldados nativos, um tormento que dura pouco tempo: em Março de 1958, já está de partida para a Índia, onde se volta a deslumbrar com novas cores e cheiros.
Na colónia asiática, a vida é fácil. O soldo militar permite todos os luxos num território onde tudo é barato e abundante. Conhece uma sociedade infinitamente mais livre do que a metrópole portuguesa, em que o sexo e a boémia são condimentos preferidos de quem está a milhares de quilómetros de casa.
Promovido a tenente em 1959, Jaime Neves regressa a Moçambique em 1960, onde recebe a dolorosa notícia da morte da mãe. Até ao final da comissão, em Dezembro de 1961, fica na Beira. A guerra estalara entretanto em Angola, mas Neves vive os últimos dias de paz na colónia banhada pelo Índico.
De regresso a Portugal, Jaime Neves vai para Chaves dar instrução a uma companhia que depois irá chefiar em combate: a Companhia de Caçadores Especiais 365. Na cidade flaviense, reencontra o amigo Ramalho Eanes. Convivem e chegam a namorar duas irmãs, que depois a guerra viria a afastar dos seus caminhos.
BAPTISMO DE FOGO
Neves chega a Angola em Dezembro de 1962, já a guerra vai no segundo ano. O capitão começa por ser oficial de reabastecimentos do Batalhão 38, mas pouco depois é-lhe confiada a chefia da C. Caç. 365. Nasce aí a reputação de militar indomável. No Norte de Angola, comanda os seus homens com disciplina implacável, mas sabe ser justo com os seus. Faz o baptismo de fogo e revela coragem e abnegação.
Em Janeiro de 1965, Jaime Neves dá um passo decisivo no seu percurso militar. Decidido a tirar o curso de Comandos, ingressa no Regime de Artilharia de Queluz, onde começa a mais dura das formações a que um militar se pode submeter. Quando regressa ao combate em África, à frente da 2ª Companhia de Comandos, em Angola, corre o ano de 1966. Os resultados da companhia impressionam. As operações sucedem-se, a guerrilha combate--se no mato, com sangue, suor e lágrimas. Em Maio de 1966, a companhia de Neves é enviada para Moçambique, onde a guerra se complica.
No Norte, o capitão lidera os seus homens em duros combates com a Frelimo. Em Tete, os guerreiros encontram descanso. Luís Filipe Costa era funcionário da câmara municipal daquela cidade do Norte de Moçambique. Estabeleceu com Jaime uma amizade que dura até hoje. "Não havia muito para fazer. À noite, bebíamos copos, íamos ao bar Carletes, depois abriu o Maxim, onde havia umas espanholas." O boémio Neves, a quem agora chamam ‘Tigre’, esforçava-se para tirar da cabeça o inferno da guerra. O whisky Cutty Sark era a companhia nocturna.
Promovido a major, Jaime Neves esteve em Moçambique até 1973. Carlos Matos Gomes, capitão dos Comandos como ele, fez-se seu amigo. Lembra "um combatente exemplar e um líder que era um exemplo".
ABRIL E NOVEMBRO
Se a guerra de África o fez um herói entre os soldados e o cobriu de condecorações e prestígio, foram os tempos revoltosos entre Abril de 1974 e Novembro de 1975 que o imortalizaram. Na Revolução dos Cravos, foi o pronto-socorro da madrugada de 25 de Abril, a quem o capitão Salgueiro Maia deve boa parte do êxito na rendição de Caetano. Avesso à política e aos políticos, cedo percebeu que a extrema-esquerda era um inimigo a abater. Foi ele o braço armado de Ramalho Eanes, e juntos executam o golpe que estancou a revolta dos pára-quedistas de Tancos e encerrou o temor da guerra civil, a 25 de Novembro de 1975. Neves conduziu os seus comandos do Regimento da Amadora à vitória que permitiu a consolidação do regime democrático.
RETIRO DO GUERREIRO
Cumprida a missão, Jaime dedica-se aos seus comandos. Recusa-se a tirar o curso para general. Sempre dispensou as mordomias e não está para ter aulas com quem nunca conheceu o som da metralhadora em combate. Desiludido, deixa a vida militar no início dos anos 80. Trabalha com o empresário Jorge de Brito, nas empresas e no Benfica, e funda uma empresa de segurança. A promoção a general surge em 2009. Aceita, mas magoado pela decisão tardia, numa fase em que a saúde já vacila. Aos 76 anos, vive num lar em Oeiras.
"EM CASA NÃO ERA NADA AUTORITÁRIO"
Boémio inveterado, Jaime Neves rendeu-se ao casamento em 1976. Delfina foi a mulher que o fez abrandar a velocidade das noites regadas a whisky e mulheres. Pai de uma rapariga, fruto de uma anterior relação, teve com Delfina mais dois filhos, Filipe e Madalena. O duro combatente foi sempre um homem de afectos. "Em casa, o meu pai não era nada autoritário", conta Filipe, de 35 anos. Só numa coisa foi intransigente: "Somos todos do Benfica, sou sócio desde que tinha um ano de idade." Tem duas netas e um neto, e a mais velha, Maria, foi criada em casa dos Neves. O comando é um avô babado.
NOTAS
LOUVORES
Entre outras distinções, Jaime Neves tem a Torre e Espada com palma, a mais alta condecoração.
CONVERSAS
O livro resulta de "dez longas conversas" do autor com o biografado, na sua vivenda de Corroios.
GENERAL
Em 2009, a promoção a general levantou críticas e aplausos. Neves aceitou, mas confessou que deveria ter vindo mais cedo.
SEGURANÇA
Com mais dois ex-comandos, fundou a empresa de segurança privada 2045, em referência a uma companhia militar.
EXCERTOS DA BIOGRAFIA DE JAIME NEVES
Olivro ‘Homem de Guerra e Boémio, Jaime Neves por Rui de Azevedo Teixeira’ conta uma vida fora do comum. Eis alguns excertos:
Primeira Comissão em Moçambique; página 91: "O capitão Jaime Neves está no posto de comando real de homens, gosta da vida que tem, não se imagina na pele de outro tipo de vida. Todas as outras vidas são mais fáceis mas não sabem tão bem como esta. Sente que ser chefe comando é o seu destino absoluto. Não tem dúvidas de que, contra a fragilidade da vida e a brutalidade da morte, a aventura é a melhor vingança. Para Jaime Neves, uma missão de combate em que comande um grupo no terreno é a melhor forma de um homem ganhar batalhas na guerra, perdida de antemão, contra a morte."
Comandante em Moçambique; pág. 111: "Afetuoso e brusco, violento, chegando à violência obscena, e bom, querendo ser um bom homem. Tal é o Jaime Neves percebido pela maioria. Um ser para o Bem, e, por vezes, para o Mal (…). Nos castigos, em vez de um processo e uns quantos dias preso na «Mariazinha», aplica o rápido corretivo de dois murros. Nas operações, não só «nunca se balda como dá sempre o litro». O Tigre é dos comandantes que vão à frente…"
No 25 de Abril de 1974; pág. 136: "A coluna de Neves, com aderentes do RI1, do Regimento de Lanceiros e do Regimento de Cavalaria 7, entretanto já vai a caminho do quartel-general da Legião Portuguesa, na Penha de França. Feita a aproximação ao centro nevrálgico da Legião, monta-se a segurança. Então, o major comando avança sozinho, apeado, peitudo, pelo largo em direção ao portão do quartel. Un Gesto Torero. O portão abre-se e aparece um legionário alto que aponta a pistola ao peito de Neves. O tom do pistoleiro é ameaçador. É um momento de tensão explosiva. Neves esvazia-a como um balão. Com desarmante à-vontade, arrefece o furibundo legionário ao apontar-lhe com o indicador para o pistolão:
– Para que é isso, pá?!
Nesta cena «muito à Neves», o legionário nada diz. Está embatucado com o desplante do interlocutor perante o tubo escuro donde pode vir a morte metálica.
– Já viste o que tenho atrás de mim?! Se me deres um tiro. És morto logo a seguir, pá!
Neste preciso momento, chega o general comandante da Legião Portuguesa. Num golpe, mede a situação e logo ordena a retirada imediata do legionário…"
Participação no golpe de 25 de Novembro de 1975; pág. 159: "A Ação na Polícia Militar é o ponto central na profissão e na vida do Jaime Neves. É-o não só porque axial para a vitória contra o totalitarismo, mas também porque consegue evitar a guerra civil. Com dois mortos, os comandos queriam imediata vingança, matar «pelo menos 200». O dramatismo da situação facilmente poderia ter derivado para a tragédia. Neves evita a sangueira. A Calçada da Ajuda e a radiosa manhã de 26 de Novembro de 1975 são o lugar e o momento do universo no qual o infinito pessoal de Jaime Neves converge. Nesta ação, a leitura fria e correta da situação, a capacidade de liderança, o poder de decisão, a valentia e o humanismo do Tigre encontram o inultrapassável ponto óptimo..."
Textos do Jornal Correio da Manhã em 21-01-2013
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